O Amor Cobre uma Multidão de Pecados

Absalão Marques

Absalão Marques
5 min readDec 22, 2020
Spending Time, Ron Hicks

“As mesmas mulheres que estão prontas a defender os seus maridos nas fases mais duras e nos momentos de maior fragilidade são (em seu trato pessoal com os homens) quase morbidamente lúcidas quanto à fragilidade das desculpas ou à cabeça dura deles.

O amigo de um homem gosta dele como ele é; sua mulher o ama e está sempre tentando transformá-lo em outra pessoa.”

— G. K. Chesterton

Este que escreve a vocês já tomou por lema essas enérgicas palavras chestertonianas. [1] Fiz delas a suma daquilo que julgava ser a verdade fundamental sobre a alteridade no relacionamento, sobre o trato saudável e vital com o outro amado. Posso afirmar desde o início que o que Chesterton diz sobre a mulher tem, sim, uma aplicação legítima quanto aos homens, se bem que com algumas poucas ressalvas que se explicam pela própria natureza das mulheres. No entanto, o que pretendemos considerar aqui é bastante abrangente, e não só pode como deve ser levado em conta por ambos os sexos.

Meu propósito, portanto, não é criticar esse pensamento de Chesterton, mas, sim, a maneira como no passado me apropriei dele. É que suspeito que muito possivelmente estejam cometendo ou venham a cometer o mesmo lapso que eu, e gostaria de, na medida do possível, adverti-los ternamente quanto a isso.

Longe de mim sustentar a tese do amor displicente, expressa por ideias tais como: “aquele que ama, aprecia, não só as virtudes, mas também os defeitos”. Pelo contrário, quero reafirmar a necessidade do amor discernente, que sabiamente faz distinção entre bem e mal, verdade e falsidade. Ora, o mais comum dos erros é aquele em que nós, em evitando um extremo, descambamos cegamente em seu contrário. É precisamente isso que eu quero que agora nos ocupe a mente.

A Lei divina é como espelho: nela vemos refletida a nossa própria imagem. Translúcida como é, ela nos faz encarar nossa verdadeira condição, sem quaisquer adornos e embelezamentos artificiais. Ela, portanto, nos incomoda radicalmente em nosso atual estado. Meditando aquelas palavras de Chesterton, eu julgava que o outro amado deveria cumprir um papel semelhante no relacionamento. Deveria ser alguém que não me deixaria pecar em paz, alguém que se me tornaria, por assim dizer, uma “lei encarnada”, sempre me dando a conhecer aquilo que me fosse um embaraço no caminho para a perfeição na vida. Eu reputava como viril e robusta essa imaginação, justamente por opor-se tão frontalmente à ideia fajuta de “amar os defeitos do outro”. Acontece, no entanto, que não me ocorreu na época as implicações mais profundas dessa mentalidade.

Eu esquecera algo extremamente desconcertante sobre a Lei: ela não pode vivificar pessoa alguma. Assim como sucede nas Escrituras, a pessoa que encarna para nós o papel da Lei só pode suscitar fardo após fardo, sem jamais trazer descanso. Um peso implacável sobrevém a todo aquele que busca viver tão somente pela Lei, e, se tal posição é incorporada num relacionamento, a alteridade converte-se num tribunal. Sim, como um espelho fiel, a Lei nos reflete, apontando cabalmente nossos erros; sim, ela nos incomoda o coração diante do mal e da falsidade; a realidade, todavia, é que pela Lei ninguém pode ser justificado, e seu fardo não é menos pesado quando alguém se nos torna a Lei em carne e osso. A ausência da Lei na vida é inadmissível; sua presença solitária, porém, é de tal modo insuportável que nos leva a clamar, com S. Paulo, entre arquejos: “Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?”

O fato é que, debaixo do fardo moribundo da Lei, assim como no relacionamento com Deus, só a Lei já é mais do que podemos suportar e, ainda assim, é muito menos do que precisamos — necessitamos profundamente da Graça na alteridade dos amantes. Sem ela, é impossível transcender o rigor do julgamento e a retribuição pura e simples. Com efeito, é somente através da Graça que o que Chesterton escreveu pode ser verdadeiramente vivido entre homem e mulher. Pois, de fato, a Lei reconhece e expõe nossa limitação e obstinação no erro, mas somente a Graça é capaz de restaurar plenamente o perdido.

É evidente que não falo de uma graça barata, que simplesmente faz vista grossa para os defeitos. A Graça de que falo é custosa, tal como a descreve Bonhoeffer: [2] implica sacrifício de si mesmo, tomando a cruz e tornando-se, à semelhança de Cristo, um perdoador. “O amor cobre uma multidão de pecados”, escreveu S. Pedro em sua primeira epístola católica; essa cobertura significa encerrar em si mesmo o ciclo de ofensas, cessar a retaliação e a relação de barganha, assumindo a pena e o prejuízo, pagando o preço da dívida — isso corresponde a tornar-se semelhante a Cristo.

Ademais, o perdão do outro amado está intimamente ligado ao perdão já recebido por Deus. Como disse o Pr. Guilherme de Carvalho [3] em um dos seus sermões:

Irmãos, aceitar o perdão não é aceitar um presente distinto apenas, singular, ad hoc, para usar uma expressão mais exata; aceitar o perdão é aceitar uma lógica, uma mente, um universo […]

É através dessa mente, infundida naqueles que foram perdoados, que o perdão é concedido. Não se trata de algo irracional ou injusto, mas algo que certamente transcende a mera razão e justiça. Quem exerce a Graça cobre os pecados do outro, não porque os ignora, mas porque os conhece bem, e os conhece de tal maneira que sabe ser impossível superá-los a menos que a ofensa seja encerrada no próprio ofendido, vencendo assim o mal com o bem. Levamos as cargas um do outro, e assim cumprimos a Lei de Cristo, que não é outra coisa senão amar como ele nos amou. “Pecadores perdoados perdoam pecadores”, como escreve Dave Harvey. [4] E tudo isso é inconcebível se superestimamos o papel da Lei por si só, inutilmente aguardando dela qualquer redenção.

Mais do que um espelho para constantemente nos refletir os defeitos, precisamos ser e ter pessoas ao nosso lado que sejam semelhantes às árvores, cuja natureza não consiste em reclamar coisas, mas em doá-las gratuita e copiosamente, estendendo os braços e dando frutos, como o próprio Cristo em sua Paixão no madeiro — precisamos de alguém que encarne para nós o Evangelho. Não busque nem preze por alguém que ame seus defeitos, nem tampouco por alguém que, como a Lei, simplesmente há de espelhá-los, sobrecarregando o seu coração com as contradições de sua vida; quem tiver de amar você, se esforçará para te transformar em outra pessoa, não semelhante a ela mesma, mas àquele que é o Amor que ama ambos, e cujo grande mandamento é o amor, que, pela Graça, cobre uma multidão de pecados.

[1] G. K. Chesterton, Ortodoxia.

[2] Dietrich Bonhoeffer, Discipulado.

[3] Sermão nº 6 da série “Sabedoria para a Vida Comum”, disponível neste link: https://www.youtube.com/watch?v=IjEc-TNg2xo.

[4] Dave Harvey, Quando Pecadores Dizem ‘Sim’.

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